'Ele não era um menino comum, isso eu soube desde que o vi. Ainda que andasse vestido da mesma maneira que os outros, tivesse as mesmas conversas e as mesmas brincadeiras, eu sempre pressenti nele aquele sangue que não corria nos outros. As vezes, fazia perguntas que assustavam. E ficava horas sentado num lugar olhando qualquer coisa sem importância, uma pedra, um inseto, um grão de areia. Ninguém compreendia. Andava sozinho por lugares desconhecidos e voltava com o sangue dos olhos quase em luz. Eu pressentia que ele acabaria descobrindo, porque só ele poderia descobrir. Não, eu não sabia deles, talvez eu soubesse sempre, mas no fundo, ou na superfície, não sei, eu não sabia, não me pergunte agora, em algum lugar de mim eu não sabia, embora em outros soubesse, não tem importância que você não compreenda isso, porque estou acostumado com a incompreensão alheia, com a minha própria incompreensão, mais do que tudo.
Da minha janela eu via quando o menino voltava, todas as tardes, e foi numa dessas tardes que eu o vi descendo lento o caminho do bosque. Vinha mais lento do que de costume, e desde o momento em que sua silhueta apareceu na curva do morro, desde esse momento eu soube. Não que houvesse algo especial, além daquela lentidão não havia nada — mas é preciso estar com as sete portas abertas para saber quando as coisas se modificam. As coisas começaram a se modificar quando o menino apareceu lento na curva que levava ao bosque.
Foi quando eu senti, mais uma vez, que amar não tem remédio.'
Caio Fernando Abreu.